Embora o Texto Constitucional de 1988 tenha assegurado o exercício da democracia participativa, é necessário reconhecer, no cenário contemporâneo, que a materialização de tal direito se apresenta como um dos grandes desafios enfrentados pela sociedade brasileira, em especial nas comunidades periféricas que surgem à margem dos centros urbanos oficiais, a exemplo de favelas e assentamentos. Ao lado disso, a promoção do tratamento eficaz de conflitos, de maneira a extirpar a cultura tradicional da transmissão de culpa para o semelhante, bem como preservando as relações continuadas e a obtenção, em fim último, de pacificação social encontram uma série de obstáculos ideológicos, advindos da cultura adversarial nutrida pelo processo, no qual uma das partes sempre será vitoriosa e outra perdedora, conjugado com o desgaste dos litigantes e a morosidade do Poder Judiciário em resolver as questões colocadas sob sua análise, desenvolve-se um cenário caótico, no qual o descrédito da justiça e da resolução de conflitos se torna uma constante. Neste substrato, a mediação comunitária se apresenta como um instrumento proeminente que busca, por meio do encorajamento do diálogo e da reflexão, a conjugação de esforços para o tratamento dos conflitos, de maneira que a decisão tomada satisfaça ambas as partes. Com realce, a solução para tais conflitos está estruturada na cooperação amigável, sendo que as controvérsias devem ser convertidas em empreendimentos cooperativos, nos quais as partes aprendem possibilidades de se expressar, colocando fim a beligerância adversarial costumeira.
1 COMENTÁRIOS INTRODUTÓRIOS: A RESSIGNIFICAÇÃO DO VOCÁBULO “CONFLITO” NA REALIDADE CONTEMPORÂNEA
É fato que o conflito é algo intrínseco à condição humana, surgindo a partir do momento em que a sociedade é constituída, derivando das pretensões adversas apresentadas pelos indivíduos em contínua convivência. Neste sentido, o conflito materializa o dissenso, decorrendo das expectativas, valores e interesses contrariados. “Embora seja contingência da condição humana, e, portanto, algo natural, numa disputa conflituosa costuma-se tratar a outra parte como adversária, infiel ou inimiga” (VASCONCELOS, 2012, p. 19). Desta feita, a percepção do conflito experimentada pela sociedade contemporânea transmuda a parte como adversária, apenas por apresentar objetivos distintos e dissonantes, tal como responsabiliza aquela como causadora do conflito, sendo, portanto, a raiz do problema que atenta contra a pacificação social, devendo, pois, ser expurgado. Ao lado disso, a partir de uma perspectiva puramente legal, “o conflito é resultado de uma violação da lei ou de uma desobediência a um padrão, fato que lhe confere uma aversão social”, segundo Foley (2011, p. 246).
Corriqueiramente, é verificável uma conjunção de esforços, por vezes sobre-humanos, para concentrar todo o raciocínio e elementos probatórios na busca insaciável de alcançar novos fundamentos para fortalecer o posicionamento unilateral, com o objetivo único de enfraquecer e destruir os argumentos apresentados pela parte ex-adversa. Tal cenário é tangível, principalmente, em processos judiciais nos quais o desgaste das partes é evidente, quer seja em razão da morosidade, quer seja em decorrência do envolvimento psicológico na questão. A visão tradicional que envolve o conflito, como sendo algo ruim, é tão arraigada na sociedade contemporânea que obsta os envolvidos de analisarem a questão de forma madura, compartilhando a responsabilidade sobre a questão, mas sim promovendo uma constante busca em transferir “ao outro” a culpa pelo surgimento e o agravamento do conflito. Ao invés de envidar esforços para tratar o conflito, por meio de estratégias sóbrias e racionais, a abordagem tradicional do dissenso concentra todos os empenhos em identificar o culpado pelo surgimento do conflito e puni-lo.
O sistema jurídico, em vigor, apresenta como robusto aspecto a confrontação entre as partes em litígios, agravando, corriqueiramente, conflitos inúteis, alongando as batalhas e fomentando o confronto entre os envolvidos no dissenso causador da lide. Trata-se da valoração do dualismo perdedor-ganhador fomentado pelo sistema processual adotado, no qual, imperiosamente, a morosidade do processo acarreta o desgaste ainda maior, comprometendo, por vezes, o discernimento dos envolvidos para uma abordagem madura da questão. No sistema vigente, pautado na conflituosidade que caracteriza os procedimentos judiciais, os litigantes são obrigados, comumente, a apresentar motivos justificadores a existência do dissenso, buscando se colocar em situação de vítima e a parte ex-adversa como culpada pela ocorrência do conflito, utilizando, por vezes, de argumentos que são hipertrofiados e que não refletem, em razão do grau de comprometimento psicológico dos envolvidos, a realidade existente, aguçando, ainda mais, a beligerância entre os envolvidos.
Ademais, a tônica desenvolvida na liturgia processual, pragmática, engessada, voltada à satisfação de índices e metas estabelecidos, com o único intento de promover a materialização ao direito fundamental e constitucional à duração razoável do processo, mascara um sistema ineficiente, no qual não se trata o problema (conflito), mas tão somente coloca fim a mais um processo, atendendo as expectativas frias e débeis de finalização de processos. Ora, é crucial destacar que o apostilado processual não se resume a uma sequência lógica de peças que observam um rito, previamente estabelecido, culminando, em sede de primeiro grau, com a prolação de uma sentença que, por excelência, encerra a prestação jurisdicional. Ao reverso, trata-se de um compêndio que reflete, comumente, as angústias e anseios dos envolvidos, os quais, mais que o pronunciamento do Estado-juiz, buscam o tratamento do conflito, das causas ensejadoras e consequências decorrentes do dissenso, de maneira a abreviar uma situação que cause desgaste emocional, psicológico e físico.
O estado emocional fomenta as polaridades e atalha a percepção do interesse comum, mascarando-o sob a falsa perspectiva de atingir apenas o interesse individual, mantendo-se incólume aos efeitos reflexos advindos do desgaste proporcionado pela gestão ineficiente do conflito. Como bem destacam Morais e Spengler (2008, p. 54), “o conflito transforma o individuo, seja em sua relação um com o outro, ou na relação consigo mesmo, demonstrando que traz consequências desfiguradas e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras”. Partindo da premissa que o conflito interpessoal não tem solução, é possível estabelecer diretrizes sóbrias que busquem solucionar as disputas pontuais, confrontos específicos, dispensando ao dissenso um aspecto positivo. Acerca do tema, Vasconcelos anota:
O conflito não é algo que deva ser encarado negativamente. É impossível uma relação interpessoal plenamente consensual. Cada pessoa é dotada de uma originalidade única, com experiências e circunstâncias existenciais personalíssimas. Por mais afinidade e afeto que exista em determinada relação interpessoal, algum dissenso, algum conflito estará presente. A consciência do conflito como fenômeno inerente à condição humana é muito importante. Sem essa consciência tendemos a demonizá-lo ou a fazer de conta que não existe. Quando compreendemos a inevitabilidade do conflito, somo capazes de desenvolver soluções autocompositivas. Quando o demonizamos ou não o encaramos com responsabilidade, a tendência é que ele se converta em confronto e violência.
O que geralmente ocorre no conflito processado com enfoque adversarial é a hipertrofia do argumento unilateral, quase não importando o que o outro fala ou escreve. Por isso mesmo, enquanto um se expressa, o outro já prepara uma nova argumentação. Ao identificarem que não estão sendo entendidas, escutadas, lidas, as partes se exaltam e dramatizam, polarizando ainda mais as posições. (VASCONCELOS, 2012, p. 19-20).
Com efeito, a solução transformadora do conflito reclama o reconhecimento das diferenças e do contorno dos interesses comuns e contraditórios, subjacentes, já que a relação interpessoal está calcada em alguma expectativa, valor ou interesse comum. Já restou devidamente demonstrada que a visão tradicional não produz os resultados ambicionados, já que a eliminação do conflito da vida social é algo que contraria a existência e interação em sociedade. O mesmo pensamento vigora com a premissa de que a paz social só pode ser alcançada, essencialmente, com a erradicação do conflito; ao reverso, a paz é um bem precariamente conquistado por pessoas e sociedades que apreendem a abordar o conflito de forma consciente e madura, dispensando um tratamento positivo, em prol do crescimento e amadurecimento dos envolvidos e não como elemento de destruição.
Segundo Foley (2011, p. 246), toda situação conflituosa deve ser analisada como uma oportunidade, na proporção em que possibilita a veiculação de um processo transformador. Ora, os conflitos são detentores de sentidos e, quando compreendidos, as partes neles envolvidas têm a possibilidade de desenvolver e transformar a sua vida, logo, como são elementos constituintes da vida humana, não podem ser concebidos como exceção, mas sim como mecanismos oriundos da coexistência em sociedade que permite o amadurecimento dos envolvidos e, por vezes, a alteração da ótica para analisar as situações adversas a que são submetidos. Neste passo, conceber o conflito como uma aberração social é contrariar a própria essência do convívio em sociedade, no qual indivíduos complexos, com entendimentos e posturas variadas e plurais, em convívio contínuo, tendem a apresentar interesses opostos, os quais, inevitavelmente, entram em rota de colisão.
É imperioso a ressignificação do vocábulo “conflito”, adequando-o à realidade contemporânea, de modo que não seja empregado apenas em um sentido negativo, mas sim dotado de aspecto positivo, permitindo aos envolvidos o desenvolvimento de uma análise madura e sóbria da questão, de modo a enfrentar o dissenso como algo corriqueiro e integrante da vida em sociedade e não como uma exceção a ser combatida. Ressignificar o conflito, neste cenário, é extrair a moldura tradicional que desencadeia a incessante busca dos envolvidos em determinar o culpado e demonizá-lo, mas sim assegurar que haja o tratamento dos motivos e causas que desencadeiam os dissensos, propiciando a estruturação cultural de uma nova visão do tema.
2 OS MÉTODOS EXTRAJUDICIAIS DE TRATAMENTO DE CONFLITOS NA PAUTA DO DIA: A MEDIAÇÃO E A PERSPECTIVA RELATIVA AO CONFLITO NAS RELAÇÕES CONTINUADAS
Ao partir da necessidade de mudança de paradigmas no tocante ao tratamento dispensado ao conflito, é possível, utilizando a definição apresentada por Roberto Portugal Bacellar (2003, p. 174), que mediação consiste em uma técnica lato senso que tem como assento a aproximação das pessoas interessadas no tratamento[1] de um conflito, induzindo-as a encontrar, por meio do estabelecimento de um diálogo, soluções criativas, com ganhos mútuos e que preservem o relacionamento entre elas. Em mesmo sentido, Vasconcelos (2012, p. 42) descreve mediação como “um meio geralmente não hierarquizado de solução de disputas em que duas ou mais pessoas, em ambiente seguro e ambiência de serenidade, com a colaboração de um terceiro […], expõem o problema, são escutadas e questionadas”, estabelecendo um diálogo construtivo e identificando interesses em comuns, opções e, de maneira eventual, estabelecer um consenso. Garcia e Verdan apontam que:
A mediação é um meio alternativo simples, essencialmente extrajudicial de resolução de conflitos e efetivo no acesso a justiça. Ocorre quando as partes elegem um terceiro (mediador) alheio aos fatos para conduzi-las à solução do conflito por meio de um acordo sem que haja uma interferência real do mesmo. O objetivo da mediação é responsabilizar os protagonistas, fazendo com que eles mesmos restaurem a comunicação e sejam capazes de elaborar acordos duráveis. A mediação não é instituto jurídico, mas sim, uma técnica alternativa na solução de conflitos que propõe mudanças na forma do ser humano enfrentar seus problemas. (GARCIA; VERDAN, 2013, p. 13). (grifei).
Distintamente do sistema adversarial processual que vigora, a mediação busca a estruturação de uma mudança cultural, especialmente no que se refere ao poder dos indivíduos de tomar às decisões que influenciam a realidade em que se encontram inseridos. Conforme Waltrich e Spengler (2013, p. 172) apontam, a mediação, na condição de espécie do gênero justiça consensual, permite uma acepção ecológica de tratamento dos conflitos sociais e jurídicos, na qual o escopo de satisfação do desejo substitui a aplicação coercitiva e terceirizada proveniente de uma sanção legal. A mediação possibilita um tratamento igualitário entre os envolvidos, na condição de seres humanos, observando as características de cada indivíduo, não comportando qualquer forma de julgamento, mas sim fomentando uma compreensão recíproca e uma responsabilidade compartilhada.
Desconstrói-se a figura da vítima e do agressor, do autor e do réu, erigindo, em seu lugar, os “mediandos”, em situação de igualdade e, a partir da edificação de diálogos e responsabilização compartilhada, amadurecidos para promover, culturalmente, a mudança de paradigmas no enfrentamento do conflito, de modo que não há uma busca sedenta pelo estabelecimento do culpado, mas sim na construção de um consenso proveniente da vontade dos envolvidos. Assim, opondo-se à dogmática processualista tradicional, que busca a eliminação do conflito por meio da simples emissão de um pronunciamento do Estado-juiz, a mediação, alçado a método transformador de uma cultura adversarial, objetiva o enaltecimento da dimensão afetivo-conflituosa, tratando as origens, as causas e as consequências advindas do conflito.
A visão da mediação transformadora sobre o conflito percebe-o como uma situação-problema comum ao convívio e que deve servir de oportunidade ao amadurecimento das relações. Contrariamente, o poder jurisdicional percebe no conflito a lide judicial a qual deve ser posta termo, visto que reflete algum distúrbio ou quebra da ordem social. A decisão autoritária põe fim à lide processual, permanecendo ou até mesmo piorando o conflito, pois na maioria dos casos a determinação judicial trabalha de forma binária com a ótica de vencedores e perdedores, não satisfazendo muitas vezes o resultado a nenhuma das partes. (BEZERRA, 2011, p. 219)
Supera-se o ranço tradicional de transferir para o Estado-juiz, de maneira exclusiva, a possibilidade para a resolução dos conflitos, notadamente os inseridos na esfera privada, assegurando, por consequência, o empoderamento dos envolvidos, de modo a desenvolver a cidadania e autonomia para a construção de consensos e promover a cultura de paz. Trata-se, com efeito, de privilegiar a autonomia da vontade das partes, ao invés de recorrer a um terceiro que decida por eles, sendo que o Estado-juiz é o último recurso, quando todas as vias de negociação fracassaram. Com destaque, o provimento jurisdicional prestado pelo Estado-juiz, comumente, está revestido apenas da técnica processual, pautado na legislação fria e em precedentes jurisprudenciais, poucas vezes volvendo um olhar sensível para as peculiaridades e nuances que emolduram a situação concreta levada a Juízo. Por mais uma vez, há que se resgatar que, diante da política de números e estatísticas que passou a inundar o Judiciário, o qual busca incessantemente demonstrar a concreção do acesso à justiça e a duração razoável do processo, o que importa é a finalização de processos, sem que isso, necessariamente, reflita na construção de consensos entre os envolvidos.
A visão transformativa propiciada pela mediação, consoante Foley (2011, p. 247), permite que o conflito seja encarado como uma oportunidade dúplice, na qual, concomitantemente, há o desenvolvimento e exercício da autodeterminação, consistente no empoderamento dos mediandos, e na confiança mútua, por meio do fomento à reciprocidade entre os envolvidos no conflito. Com destaque, a resposta ideal ao conflito não consiste em buscas desenfreadas e beligerantes de extirpá-lo para promover a resolução do problema; ao contrário, o conflito reclama uma gestão madura, a fim de materializar um processo de transformação dos indivíduos nele envolvidos. Neste passo, a mudança paradigmática de ótica no tratamento do conflito é responsável por alterar o comportamento dos mediandos diante do dissenso, fomentando a responsabilidade compartilhada e solidarizada, de modo a não estabelecer polos antagonistas, mas sim partes complementares.
Warat (2001, p. 80-81) já se posicionou no sentido que a mediação não está cingida a somente o litígio, ou seja, com a verdade formal contida nos autos, alheia à moldura factual que enquadra o dissenso entre os envolvidos. De igual maneira, a mediação, na condição de método extrajudicial de tratamento de conflitos, não busca como única finalidade a obtenção de um acordo que, corriqueiramente, não reflete substancialmente a vontade das partes nem permite a responsabilização solidária dos envolvidos. Ao reverso, o fito maior é ajudar os interessados a redimensionar o conflito, compreendido como conjunto de condições psicológicas, culturais e sociais que foram responsáveis por causar a colisão entre as atitudes e os interesses no relacionamento de pessoas envolvidas. A perspectiva valorada não está assentada no ideário puramente acordista, que concebe o acordo como o fim último do processo, o qual transmite o ideário mascarado de tratamento do conflito, colocando fim em mais um número que tramita nos sistemas de gerenciamento de dados dos Tribunais de Justiça. Ao reverso, a ótica privilegiada está calcada na construção paulatina e imprescindível do consenso, no qual o mediador atua na construção de uma relação alicerçada no diálogo, possibilitando o entendimento de sentidos, a partir da determinação da autonomia e empoderamento dos indivíduos.
Como bem assinala Silva (2004, p. 15), “a base do processo de mediação é a visão positiva do conflito. A ciência desta ensina o conflito como algo necessário para o aperfeiçoamento humano, seja pessoal, comercial, tecnológico, ou outro qualquer”, sensível às complexas e intricadas realidades apresentadas por cada indivíduo e que contribuíram para a abordagem do conflito. Deve-se destacar, com ênfase, que “a finalidade de todo o processo é a obtenção de um acordo satisfatório para as partes e o desenrolar do mesmo é feito com base na consensualidade” (RIOS, 2005, p. 11), eis que tão somente assim são alcançadas as soluções que satisfazem os interesses de ambos os envolvidos. Na mediação, os indivíduos não atuam como adversários, porém como corresponsáveis pela solução do conflito, contando com a colaboração do mediador, o terceiro – que deve ser apto, imparcial, independente e livremente escolhido ou aceito.
É necessário colocar em destaque, também, que a mediação, na condição de método de tratamento extrajudicial de conflitos, combate a escalada de desentendimentos decorrentes do moroso e litigioso procedimento adotado no cenário jurídico vigente, não permitindo que as partes alcancem o conflito extremo, permitido pelo sistema adversarial. “A ideologia ganhador-perdedor vigente no sistema tradicional judiciário é substituída por uma nova abordagem baseada na cooperação entre as partes envolvidas e não na competição” (SANTA CATARINA, 2004, p. 04). Deste modo, a mediação apresenta-se como forma inovadora, no território nacional, de abordagem jurídica e também como alternativa ao sistema tradicional judiciário adotado para tratar os conflitos, nos quais se valoram a cooperação e a disponibilidade em promover a solução, destacando-se, via de consequência, como elementos imprescindíveis para a construção de um consenso entre os mediandos.
É plenamente perceptível que a mediação exige terreno próprio para atuação, em decorrência dos aspectos a que se propõe, notadamente a mudança cultural no tocante ao enfrentamento do conflito, já que suas bases se pautam na busca de um consenso qualitativo que só pode ser alcançado com o tempo e com a mudança cultural das partes que preferencialmente esperam ouvir, atender uma ordem do Estado a tomar uma decisão por si. Sobre tal assunto, Dierle José Coelho Nunes (2011, p. 174) afirma “que existem situações em que os acordos são impostos, mesmo quando sejam inexequíveis para permitir a pronta “resolução do caso”, com a adequação à lógica neoliberal de produtividade”, e isso, por óbvio, não é o que se espera da mediação de conflitos. Neste passo, a mediação propõe a responsabilização dos envolvidos para tratarem o conflito, de maneira que consenso seja resultante da conjunção de esforços e reflita as vontades dos mediandos, não se traduzindo, via de consequência, em um pronunciamento emanando por um terceiro (Estado-juiz), alheio às nuances e particularidades que emolduram o dissenso.
3 A COMUNIDADE COMO LOCUS DE PROMOÇÃO DAS PRÁTICAS DE MEDIAÇÃO E O EMPODERAMENTO DO INDIVÍDUO NO TRATAMENTO DE CONFLITOS
A comunidade, em um primeiro momento, seria aquilo ao qual o indivíduo está ligado e aquilo que o liga e outros indivíduos. De igual modo, como Spengler (2012, p. 154) assinala, a comunidade é também aquilo que engole o indivíduo, tornando-o “apenas mais um”, que faz indistinta a identidade, uma vez que inclui no mesmo espaço no qual os demais indivíduos estão incluídos e isso, corriqueiramente, pode significar perder a subjetividade, a individualidade, a autonomia e a subjetividade. Essa complexidade e fragmentação da realidade social são os traços característicos da contemporaneidade, impressos nas esferas mundial e local. Os grupamentos humanos unidos por diversas identidades, dentre elas a territorial, que confere à comunidade o status de locus propício para o desenvolvimento de mecanismos que possibilitem a transformação social. “Onde há coesão social, há identidade compartilhada, cuja criação depende da mobilização social e do envolvimento com os problemas e soluções locais” (BRASIL, 2008, p. 26).
Ora, desenvolver a comunidade é um processo complexo que agrega valores éticos à democracia e constrói laços de solidariedade, sendo imprescindível a promoção de esforços para o amadurecimento da população, de maneira a gozar de autonomia para tratar os conflitos e dissensos existentes, de maneira positiva e responsavelmente compartilhada. Cuida assinalar, neste sedimento, que “tudo aquilo que puder ser feito pela própria sociedade deve ser feito por ela, quando ela não puder fazer, o Estado interfere, mas não se trata de um Estado mínimo ou máximo, mas sim do Estado necessário” (MONTORO, 2002). Essas palavras, proferidas pelo professor André Franco Montoro, em Seminário sobre o “Federalismo e o fortalecimento do poder local”, expressam o coração do tema ora posto em reflexão: a perspectiva de um Estado mediador, que se encontra em um meio termo (nem absenteísta, nem interventor) e abraça um povo que se coloca como ator e responsável pela realidade que o cerca. Nessa projeção, sinaliza-se para o fenômeno do fortalecimento da sociedade civil, consolidando sua responsabilidade na realização do bem comum, tendo por meta a efetivação de uma democracia possível, com a concretização do primado da dignidade da pessoa humana e o reconhecimento de valores como a solidariedade e a participação popular.
É possível destacar que as comunidades periféricas, que florescem à margem dos centros urbanos oficiais, tais como assentamentos e favelas, permitem aos seus moradores a consolidação de uma identidade comunitária, na qual “têm voz e vez podem colocar em ação suas iniciativas, desenvolvem sua criatividade, mas seu ser não se esgota nelas mesmas: elas se completam na medida em que se tornam um ‘ser para’” (GUARESCHI, 2009, p. 96), exercitando sua plena vocação de animal político e social. Ainda que seja experimentado viver em um tempo de judicialização da política e de ativismo judicial, no qual o magistrado não é simplesmente la bouche de la loi, agindo ativamente ante as mazelas e falhas das instituições, é forçoso reconhecer que esse ativismo (igualmente foco de críticas) não é capaz de dar vazão a todas as necessidades e emergências que surgem a cada dia na realidade de cada comunidade.
Na esfera do Poder Judiciário, os obstáculos a seu acesso são notáveis, principalmente àqueles menos favorecidos, o que estimula o desenvolvimento e a consolidação de novas fórmulas, surgindo, neste contexto, a mediação comunitária, como força pulsante na solução de conflitos. Superando a realidade de que a maioria desconhece seus direitos (e deveres) e que o processo judicial essencialmente dispendioso, o é proporcionalmente ainda mais caro aos mais pobres, como já observou Boaventura de Souza Santos (1985, p. 167). Assim, a mediação comunitária se fortalece “por perseverar as relações sócio-afetivas, encarando o indivíduo como responsável por suas próprias ações e, como tal, capaz de solucionar seus problemas, atuando como sujeito de seu destino, desperta a mediação nos que a ela recorrem a consciência de seu papel de ator social” (MOREIRA, 2007, p. 212). Neste quadrante, a mediação, ao preservar o respeito à dignidade do indivíduo, resgata em sua clientela o sentimento de cidadania que neles se encontra dormente.
Na atualidade, o Brasil verifica um acentuado quadro de conflitos sociais que se estender por distintos segmentos. Trata-se de uma generalização de conflitos que se desenvolve fomentado pelo estresse da contemporaneidade, conjugado com a ausência de mecanismos eficientes na resolução de conflitos, de maneira extrajudicial e que permita a manutenção das relações continuadas. “Áreas urbanas e rurais, bairros de diferentes classes e também escolas estão sendo palco de agressões físicas e psicológicas quase diárias, gerando uma sensação de insegurança e revolta na população do país” (SALES; ALENCAR; FEITOSA, 2009, p. 282). Tal fato decorre, em especial, devido à erosão das instituições sociais que são responsáveis pelo desenvolvimento dos cidadãos e pela segurança dos indivíduos. Neste aspecto, comumente destaca-se que a família, a escola e os órgãos de segurança pública, entre outros, estão falhando no cumprimento de suas funções sociais. Denota-se, deste modo, que nas últimas décadas houve um progressivo esfacelamento da estrutura que sustenta a sociedade brasileira, agravo robustamente em decorrência da distorção de valores e costumes, bem como influenciado pelo ritmo frenético que caracteriza a vida contemporânea, em especial nos grandes centros.
Salta aos olhos que, em decorrência da contínua judicialização dos conflitos e o ativismo propiciado à população, acarretam o engessamento do Poder Judiciário que, em razão do vultoso número de demandas ajuizadas diariamente, assim como ausência de recursos humanos suficiente e um sistema processualista desarmonioso com a realidade em que está inserido, não logra êxito em uma de suas funções estruturantes, qual seja: a pacificação social. Morais e Spengler (2008, p. 54) destacam que “o conflito transforma o individuo, seja em sua relação um com o outro, ou na relação consigo mesmo, demonstrando que traz consequências desfiguradas e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras”. Em razão deste caótico cenário, no qual o desgaste das partes e o agravamento do conflito se tornam uma constante, conjugado com a necessidade de desenvolvimento de uma cultura pautada no diálogo entre os indivíduos, em especial nas comunidades, observam-se, em especial nas últimas três décadas, o desenvolvimento e a implantação de projeto que buscam a mediação de conflitos, sendo empregado como instrumento que “objetiva não apenas auxiliar a boa resolução de litígios entre as partes envolvidas, mas bem administrar as relações existentes, para que as pessoas mantenham seus vínculos afetivos e possam construir uma sociedade fundada numa cultura de paz” (SALES; ALENCAR; FEITOSA, 2009, p. 290).
No mais, cuida destacar que uma sociedade democrática é caracterizada pela existência de cidadãos capazes de solucionar, com habilidade, os problemas e embates sociais, decorrentes do convívio com outros indivíduos, em especial quando o fenômeno judicializante que vigora no Brasil obsta a pacificação social e a manutenção dos laços de convivência contínua, estando voltado para o julgamento mecânico das lides e atendimento de metas. Tal capacidade, com efeito, decorre da estruturação de uma educação associada ao desenvolvimento da acepção estrutural de cidadão, enquanto integrante da vida pública, e por meio da prática cotidiana da participação livre e experiente da cidadania. “Participação e cidadania são conceitos interligados e referem-se à apropriação pelos indivíduos do direito de construção democrática do seu próprio destino” (NASCIMENTO, 2010). Ora, é verificável que ambos estão umbilicalmente atrelados, porquanto a cidadania só é substancializada na presença de uma participação social entendida enquanto ação coletiva e o seu exercício consciente, voluntário e conquistado. Nesta esteira, a construção de uma vivência democrática transparente reclama uma gestão que se alicerce na inclusão da comunidade em geral, assegurando, por extensão, a igualdade de participação, tal como possibilite a expressão das ideias que possam ser discutidas em momento de deliberação coletiva.
Assim, é imprescindível o exercício da comunicação, eis que quando os indivíduos passam a ter oportunidade plena de interagir, debater e deliberar a respeito dos problemas concretos que a comunidade apresenta diariamente, é desenvolvido a capacidade de lidar com estes problemas, bem como convergir esforços para a sua resolução. Ao lado disso, não se pode olvidar que em um procedimento tão livre e autocorretivo de intercomunicação, o surgimento de conflitos entre os indivíduos é algo inevitável, principalmente que cada um tem seu modo de encarar as necessidades, fins e consequências, tal como tolerar níveis de desgaste. Com realce, a solução para tais conflitos está jungida na cooperação amigável, sendo que as controvérsias devem ser convertidas em empreendimentos cooperativos, nos quais as partes aprendem possibilidades de se expressar. A gestão democrática e participativa de conflitos requer o desenvolvimento de um olhar de cada espaço como um elo de resolução das pendências e colisões de interesses interpelando os envolvidos e os demais integrantes da comunidade à participação e ao envolvimento nesse procedimento.
É possível destacar, em um primeiro momento, que a mediação consiste em um procedimento consensual de resolução de conflitos por meio do qual um terceiro indivíduo, imparcial e capacitado, escolhido ou aceito pelas partes, atua para encorajar e facilitar a resolução de conflitos. Os mediados estruturam a decisão que melhor os satisfaça, sendo resultantes da convergência das vontades de ambas as partes, estando, portanto, atento às particularidades e nuances da situação concreta. Verifica-se, assim, que há a desconstrução da ideologia pautada no ganhador-perdedor, que vigora no sistema tradicional judiciário, passando, em seu lugar, subsistir uma abordagem assentada na cooperação entre as partes envolvidas e não na competição beligerante processual. É observável, neste cenário, que a mediação se apresenta como um instrumento de solução de litígios, empregado pelas próprias partes que, impelidas pelo diálogo, encontram uma alternativa ponderada, eficaz e satisfatória.
A mediação comunitária, nesta faceta, retira do conflito o seu aspecto negativo, conferindo-lhe um significado positivo, natural e imprescindível para a lapidação das relações, tal como a sua boa administração representa o percurso para o entendimento e para o restabelecimento da pacificação entre as partes. Sobre o tema, Foley (2011, p. 252) salienta que “quando a prática da mediação ocorre na esfera comunitária, pode haver uma integração das estratégias de fortalecimento da comunidade: o acesso à informação, a inclusão e a participação, a corresponsabilidade, o compromisso e a capacidade de organização local”. Em decorrência de seus aspectos característicos, a mediação se revela como um mecanismo de solução adequado a conflitos que abordem relações continuadas, aquelas que são mantidas apesar do problema existente. Tal fato deriva da premissa que nessa espécie de conflitos se encontra as maiores dificuldades para a manutenção do diálogo e da comunicação, em razão da intensidade dos sentimentos envolvidos e da proximidade existente entre as partes, configurando verdadeiro obstáculo a reflexão. “A mediação conduz a um determinado grau de democratização, equivalente à realização de cidadania plena alcançada por quem dela participa, ao passo em que gere cidadãos ativos que compartilham efetivamente da vida social de sua comunidade”, como bem evidencia Nascimento (2010).
A mediação comunitária representa a coesão e a solidariedade sociais desejando a efetividade das chamadas democracias de alta intensidade. A mediação comunitária aglomera as comunidades mais carentes em busca da solução e prevenção dos seus conflitos, almejando a paz social, com base na solidariedade humana. Sendo essa mediação realizada em comunidades periferias, onde o desrespeito aos direitos constitucionais é flagrante, representa um meio ainda mais efetivo de transformação da realidade. A mediação comunitária é um processo democrático de solução de conflitos, na medida em que possibilita o acesso à justiça (resolução dos conflitos) à maior parte da população de baixa renda. Além de possibilitar essa resolução, oferece aos cidadãos o sentimento de inclusão social. Ao lado disso, quadra salientar que a base do processo de mediação é o princípio da solidariedade social. A busca de soluções adequadas para casos, pelas próprias partes, incentiva a conscientização das mesmas para a necessidade da convivência em paz.
Conforme sublinha Sales (2004, p. 136), a mediação comunitária estimula o indivíduo a participar ativamente da vida política da comunidade em dois sentidos: “quando possui a responsabilidade de resolver e prevenir conflitos (mediador) e ainda quando se tem a certeza de que existe um local, próprio da comunidade, direcionado a resolver as controvérsias que apareçam (mediados)”. Desta feita, a mediação comunitária viabiliza a construção de uma identidade política comum, ou melhor, a construção de um senso de pertencimento físico e espiritual com relação a uma dada localidade, privilegiando a comunidade como o locus fértil para o exercício de tal método de tratamento de conflitos. Ao promover a capacidade para a autogestão dos conflitos, empodera a comunidade sob uma perspectiva relacional, afixando um poder comunitário expressado no “poder com o outro”; na horizontalidade da conquista compartilhada e no resgate da consciência de que cada ser humano, num contexto coletivo, identifica-se como ator social, protagonista de destinos.
4 MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA COMO AXIOMA DE EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: O FOMENTO DO DIÁLOGO NA COMUNIDADE PARA A CONSTRUÇÃO DE DECISÕES COLETIVAS
À sombra do pontuado até o momento, cuida anotar que, em sede de mediação, subsiste um cuidado, por parte do mediador, de promover a facilitação do diálogo entre as partes, de modo a viabilizar a comunicação pacífica e a discussão efetiva dos conflitos. “O ato de conversar (ou seja, não somente falar, mas também ouvir) e de poder olhar o problema de novas maneiras ajuda as pessoas a encontrarem, juntas, os melhores caminhos para a solução de seus conflitos” (BRASIL, 2008, p. 16). Nesta linha, conforme Carvalho (s.d., p. 04) destacou, diálogo não tem seu sentido associado apenas a manutenção de uma conversa, mas sim na possibilidade de se colocar no lugar do outro, a fim de compreender seu ponto de vista, respeitar a opinião alheia, compartilhar as experiências vividas, partilhar a informação disponível e tolerar longas discussões para se alcançar um consenso que satisfaça tanto os envolvidos quanto à comunidade direta e indiretamente afetada. Dentre os principais objetivos adotados por este procedimento, é possível mencionar a solução extrajudicial dos conflitos. Entrementes, em que pese sua importância, cuida destacar que essa não dever ser o único fito a ser ambicionado na mediação de conflitos; ao reverso, outros objetivos da mediação devem ser enfocados, como, por exemplo, a má administração dos conflitos, o que permite o tratamento adequado do problema e a manutenção dos vínculos afetivos existente entres as partes, tal como a busca pela inclusão social e da pacificação social.
Neste aspecto, verifica-se, por mais uma vez, que a mediação é instrumento apto ao desenvolvimento do diálogo entre os envolvidos, com o auxílio e participação da comunidade, de modo geral, para que seja possível a superação do litígio, bem como a afirmação dos valores estruturantes da própria democracia participativa, despertando no cidadão a necessidade de um papel ativo. “Busca-se trabalhar a mediação como instrumento de promoção da paz social e de diminuição da violência. Assim, a paz social é entendida como algo que vai além da inexistência de violência física e moral, passando pela necessidade de efetivação dos direitos fundamentais” (SALES; ALENCAR; FEITOSA, 2009, p. 291). Com efeito, a estruturação de um diálogo entre os envolvidos e a pacificação social não são alcançadas em comunidades em que há fome, elevados índices de desemprego, indivíduos realizando trabalhos forçados ou mesmo em condição análoga à de escravidão, maciça exploração sexual infantil, carência de moradias dignas, baixos níveis de educação e saúde, além de outras mazelas sociais que interferem, de maneira direta, no desenvolvimento harmônico e sustentável da sociedade, afetando, inclusive, na paz social.
Fomenta-se a paz quando se resolve e previne a administração inoperante dos conflitos; quando se busca promover o diálogo; quando se possibilita a discussão sobre direitos e deveres, bem como responsabilidade social; quando se viabiliza a substituição o sentimento de competição, inerente ao sistema adversarial estruturado no Brasil, pelo ideário de cooperação. “É nos espaços de participação construídos através de uma mediação democrática que os envolvidos aprendem e vivenciam a cidadania. Rompendo o silêncio, abre-se à participação para além dos espaços privados da comunidade” (NASCIMENTO, 2010), contribuindo, assim, para o fortalecimento deste ambiente social e, secundariamente, na construção de um Estado que propicie a democracia participativa em seus plurais desdobramentos. Ora, a mediação, na condição instrumento pacífico e participativo de resolução de conflitos, vindica das partes envolvidas o diálogo acerca dos problemas, dos comportamentos, dos direitos e deveres de cada um, sendo que toda essa discussão se assenta na forma cooperativa, fortalecendo o compromisso ético com o diálogo honesto.
Há que se reconhecer, neste cenário, que o fomento ao empoderamento dos indivíduos propicia um processo transformativo aberto e externado pela participação cidadã, culminando na autonomia de tratamento de conflitos, ao tempo em que fortalece o desenvolvimento comunitário. Ao lado disso, os objetivos ambicionados pela mediação em comento consistem no desenvolvimento entre a população de valores, conhecimentos e comportamentos que conduzam ao fortalecimento de uma cultura de paz. De igual modo, em substituição a tradição visão adversarial ganhador-perdedor, enfatiza-se a relação entre os valores e práticas voltados à realização da democracia e da convivência pacífica, contribuindo para a construção de um consenso entre os indivíduos, no qual o respeito e a tolerância são os aspectos característicos mais proeminentes. Há um caminho para o exercício da cidadania participativa, consistente na possibilidade da busca conjunta, consciente e amadurecida das partes envolvidas em prol do tratamento do conflito existente. Vezzula (2010, p. 56) salienta que “a mediação, recuperando os conceitos de participação responsável da comunidade na abordagem e na resolução dos conflitos entre seus integrantes, foi fortalecendo a sua identidade e, com isso, consolidou a capacidade de protagonismo dos moradores”.
“A mediação nas comunidades traduz o exercício de cidadania e de democracia, pois permite que os cidadãos, até então socialmente excluídos, resolvam por si mesmos seus conflitos com o auxílio de um mediador” (CARVALHO, s.d., p. 05). Com efeito, por estar calcada em uma mudança de cultura, a mediação possibilita aos indivíduos, até então, marginalizados a possibilidade de terem responsabilidade sobre suas vidas e serem incluídos socialmente, reafirmando o preceito basilar de empoderamento dos envolvidos. Mais que simplesmente dialogar (conversar), a abordagem do conflito, a partir de uma perspectiva pautada na responsabilidade solidária e compartilhada, assegura aos mediandos a construção de um consenso decorrente da confluência de vontades, no qual se deteriora a ideologia de ganhador-perdedor, edificando, em seu lugar, uma doutrina em que ambas as partes são exitosas ao final. Há uma participação direta dos envolvidos na tomada de decisão, de maneira que o consenso atingido reflete a vontade livre, consciente e amadurecida dos envolvidos, exercendo uma democracia participativa plena, sem mitigações ou obstáculos, o que repercutirá diretamente na qualidade de vida.
Convém destacar que “a mediação desenvolvida em bairros das cidades (mediação comunitária) propicia o diálogo entre as pessoas que convivem diariamente, auxiliando na solução dos seus conflitos e contribuindo para a construção da paz social” (SALES; ALENCAR; FEITOSA, 2009, p. 292). Ora, como a prática da mediação estabelece a reclamação ativa dos envolvidos no tratamento de conflitos, passa-se a não apenas a debater sobre questões de feição individual, mas também questões de aspecto coletivo. As experiências brasileiras em mediação, especialmente aquelas realizadas nas periferias dos municípios, têm revelado mudanças de comportamento das pessoas: tornaram-se mais participativas nas decisões individuais e coletivas, refletindo a conjunção de esforços entre os envolvidos, compartilhando a responsabilidade em relação ao tratamento do conflito. É possível, assim, observar que a mediação, ao fomentar o empoderamento dos indivíduos, na construção dos consensos e responsabilidade compartilhada, também alimenta a participação do cidadão na tomada de decisões, conscientizando-o não apenas acerca das questões individuais, mas também sobre as questões coletivas e seus desdobramentos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do cenário apresentado, é possível pontuar que, conquanto a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, também nomeada de “Constituição Cidadã”, assegurar, formalmente, o acesso à justiça, há que se salientar que o Poder Judiciário, em decorrência do pragmatismo existente e da visão processual adotada, diariamente, frustra a promoção de tal direito. Na realidade, a busca insaciável por diminuição de processos, com emissões de pronunciamentos do Estado-juiz, pautado, corriqueiramente, na distorcida visão do acordo como elemento de satisfação das partes, apenas atende o aspecto quantitativo de índices e dados que buscam demonstrar que o Judiciário, como zeloso e sensível Poder constituído, trava uma batalha pela materialização do princípio da duração razoável do processo. Ora, a falaciosa cultura acordista, adotada no modelo nacional, não trata o conflito nem as causas que o desencadeiam; ao reverso, fomenta apenas o tradicionalismo adversarial arraigado que, imperiosamente, agrupa os envolvidos em polos conflitantes que, uma vez infantilizados pelo monopólio na solução dos litígios, transferem ao terceiro, Estado-juiz, a capacidade de gerir o dissenso e determinar, a partir do arcabouço jurídico posto, qual dos envolvidos é detentor do direito pleiteado ou mesmo quem ganha e quem perde.
Em oposição à visão negativa de abordagem dos conflitos, a mediação, como método extrajudicial de tratamento dos dissensos, busca promover uma mudança cultural, pautada no empoderamento dos envolvidos, de modo que, a partir do diálogo e amadurecimento dos mediandos, seja possível estabelecer uma responsabilização compartilhada, em substituição à figura do culpado, culminando na construção de consensos que decorram, de fato, da confluência da vontade dos envolvidos. Não mais vigora a ideologia dualística do ganhador-perdedor, mas sim uma ótica segundo a qual o diálogo estruturado permite que ambos os envolvidos experimentem uma nova percepção do conflito, algo intrínseco e inseparável da convivência em sociedade. A cultura de empoderamento dos indivíduos possibilita que seja desenvolvida uma autonomia participativa que refletirá diretamente na construção dos consensos formados, eis que derivarão da conjunção de esforços e anseios dos envolvidos. Neste cenário, o consenso é fruto da vontade dos envolvidos que, uma vez empoderados, logram êxito na gestão do conflito e no melhor mecanismo para tratá-lo, distinguindo-se, via de consequência, do pronunciamento estatal que, corriqueiramente, é imposto pelo julgado, alheio às nuances e aspectos caracterizadores dos envolvidos, estando atrelado apenas ao arcabouço jurídico.
Inexiste a figura do juiz togado, cuja legitimidade é proveniente do reconhecimento dispensado pelo Estado e pelo sistema burocrático, mas sim o mediador, o terceiro imparcial, escolhido consensualmente pelos envolvidos, cuja legitimação decorre do próprio reconhecimento da comunidade que, ao invés de emanar uma decisão, apenas orientará a condução do diálogo, permitindo que os mediandos alcancem o tratamento mais adequado ao conflito existente. À luz do exposto, a mediação desenvolvida em comunidades se apresenta como robusto instrumento de empoderamento dos envolvidos, eis que possibilita o desenvolvimento de uma cultura participativa, na qual os indivíduos passam a gozar de autonomia e amadurecimento necessário para tratar os dissensos, sem que haja a necessária intervenção do Estado-juiz e todo o aparato processual enrijecido que o sustenta. Em especial nas comunidades que florescem à margem das cidades oficiais, que padecem da atuação ativa do Estado, sendo, por vezes, governada por um poder paralelo, decorrente do poderio do tráfico de drogas, necessário se faz a estruturação de mecanismos que permitam a preservação dos cidadãos, o fortalecimentos de uma mentalidade que busque o restabelecimento da pacificação social e manutenção das relações contínuas.
Assim, diante cenário no qual as pessoas são desassistidas em seus direito individuais e sociais, na tentativa de melhorar a qualidade de vida através da pacificação e participação social. É possibilitada uma valoração dos aspectos compartilhados pelas comunidades e não apenas um saber técnico-jurídico, por vezes, estranho àquelas, tendente a edificar barreiras que obstam o diálogo e tão somente hierarquiza os envolvidos. É o cidadão quem orienta a gestão do conflito, promovendo o diálogo e a mudança cultural, retirando do Estado o monopólio tal tarefa. Em tom de arremate, mediação, mais que um conjunto de técnicas e métodos extrajudiciais que tratam o conflito, é sinônimo de autonomia e exercício de democracia participativa, permitindo que o indivíduo seja capaz de construir consensos, superar as divergências e promover uma cultura de paz.
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Notas
[1] Conquanto o autor empregue o termo “resolução”, pelas razões aduzidas em nota anterior, será mantida a expressão “tratamento”, ao abordar os conflitos.
Por Tauã Lima Verdan Rangel, Bolsista CAPES, Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo PPGSD-UFF (2013-2015). Especialista em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES (2014-2015). E-mail: taua_verdan2@hotmail.com
Fonte: Jornal Jud – 08 de Fevereiro de 2017
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